Somos todas um pouco a garota exemplar da Gillian Flynn

janeiro 28, 2018



Decidi começar meu ano lendo Garota Exemplar, da Gillian Flynn. A essa altura você já deve ter assistido ao filme, então acredito que poderei falar sobre essa obrona da porra sem medo de ser feliz. Para começar, foi meu primeiríssimo contato com a literatura policial moderna, feita por mulheres. Quem me conhece sabe como eu simplesmente amo esse gênero literário e sempre lamentei o fato de não ver, e até mesmo de não conhecer, mulheres que pudessem escrever romances policiais com os quais eu pudesse me identificar. Porque, digamos assim, a minha estatura de um metro e meio não dialoga muito com o detetive do Raymond Chandler.

Voltando ao que interessa, Gillian apareceu assim, do nada, e me deixou totalmente sem chão. Eu fiz essa leitura durante uma viagem de quatro dias para a praia, boa parte dos quais passei a tarde inteira lendo o livro e olhando o mar. A cada capítulo eu parava, olhava o mar, pensava. Terminei o livro no final da minha viagem, praticamente na volta para Porto Alegre, e o descaralhamento da minha cabeça foi elevadíssimo. Comecei a sublinhar praticamente tudo o que via a partir de um determinado momento, tenho certeza de que quem leu sabe precisamente de qual momento estou falando.

Para quem não sabe, vamos lá: Amy e Nick são um casal de margarina do comercial. Um dia, a moça some. Ninguém sabe, ninguém viu. O marido se torna o suspeito número um, como uma boa leitora de James Cain já sabe, no caso eu mesma. À medida que a história vai se desenrolando, ora narrada por Nick e ora por Amy, vamos percebendo que há algo errado. O casal margarina, por fim, não era tão margarina assim.

Você está preparado para saber o plot twist? Eu achava que estava, veja bem, já sabia dele. No entanto, a surpresa foi pela maneira como ele foi conduzido, e isso deu um significado todo novo ao livro.

Amy não está morta.
Amy forjou a própria morte.
Amy forjou a própria morte para culpar o marido.
Amy cansou de ser aquilo que esperavam dela, por isso ela forjou a própria morte.

Já pode gritar? VAMOS GRITAR ENTÃO. Pois é, meus amigos, isso daqui é um filme do Hitchcock com um sentido todo novo. Amy forja a própria morte para ser outra pessoa. Ou quem sabe para tentar ser alguém.

Ao longo do livro, tomamos conhecimento de que os pais de Amy escreveram uma série de livros chamada Amy Exemplar. De repente, a filha desse casal se tornou uma personagem de um livro, adorada por centenas de crianças. Amy perde sua identidade e isso só piora quando ela se casa com Nick. Betty Friedan em seu livro mais descaralhador de cabeças, A Mística Feminina, fala sobre esse momento preciso no qual a mulher perde a própria identidade para se tornar esposa de um homem. Ela é sempre a esposa de fulano, nunca ela própria. Isso acabava levando muitas mulheres, nos anos 50, à depressão e ao suicídio. Não dá para não lembrar de Simone de Beauvoir quando ela fala sobre o fato de a mulher ser O Outro. A experiência de ser mulher é toda pautada na nossa """aparente""" diferença em relação aos homens. 

Então temos Amy, que já era Exemplar porque seus pais a fizeram assim, e ela só passa a ser cada vez mais perfeita após se casar. No entanto, a verdade é que ela esperava a mesma perfeição do marido. Aos poucos, ela vai conhecendo o marido melhor e por fim percebe o cara babaca que ele era. Percebe como ela havia tentado ser a cool girl (essa parte foi uma das que mais marquei durante o livro) e havia falhado miseravelmente. Como o mundo nos obriga a ser cool girl para conquistar um cara. Quando Amy já não era mais isso, é claro que Nick se cansou, procurando em outra freguesia outra cool girl.



Ao olhar para os motivos de Amy a partir de sua experiência enquanto pessoa, você passa a entendê-la melhor e até torcer por ela. Sim, a atitude dela não foi nada correta. Porém, quantas vezes nós simplesmente nos apagamos em prol de outra coisa? Quantas vezes nos ignoramos para satisfazer a outras pessoas? A experiência de Amy, portanto, se torna uma experiência quase universal entre mulheres: a perfeição e a constatação de ter falhadem dezembro do ano passado, eu escrevi sobre a Nathalia Timberg para o Valkírias, algo que eu queria fazer há horas, porque vocês sabem que nasci para enaltecê-la. No meio da escrita, tive um insight e percebi, mais do que nunca, como o meu modo de levar a vida é muito parecido com o da Nathalia. Nós praticamente estamos separadas por uns bons 40 anos, mas nos encontramos em um caminho tortuoso difícil chamado "o tormento do ideal". Fiz essa brincadeira no texto, dizendo que Nathalia é uma pessoa que busca a perfeição e que ela luta contra a percepção de que ela é inatingível o tempo inteiro. O último espetáculo dela, Chopin ou o tormento do ideal, fala muito sobre isso, por isso o jogo de palavras. Qual não foi a minha surpresa ao perceber que somos todas um pouco Nathalia? Nós estamos em busca de uma perfeição inatingível, de diferentes formas. A dor de não atingi-la é maior em nós mulheres, uma vez que a sociedade não trata nossas falhas da mesma forma que a dos homens.

Por todos os motivos elencados acima, minha experiência com Garota Exemplar se transformou em uma das coisas mais torturantes e mais fascinantes que a literatura policial me proporcionou. Não estava pronta para pensar sobre isso logo na primeira leitura do ano. Porém, precisamos muito desse exercício, já que ele impacta diretamente na nossa saúde mental. Hoje, um ano após ter começado a fazer terapia, percebo como o tormento do ideal ainda me acompanha, embora de maneira menos dolorosa. É uma luta diária para desconstrui-lo.

Ainda sobre perfeição, fui atropelada pela cinebiografia, indicada ao Oscar, I, Tonya. A história real da patinadora Tonya Harding me deixou dias e dias pensando sobre tudo o que nós fazemos para nos adequarmos ao que os outros esperam de nós. Como Tonya teve de fazer um extreme make over de sua vida para poder se adequar ao que os juízes de patinação esperavam dela. Talento? Ah, é importante, mas a aparência também. Dá vontade de apertar o pause diversas vezes e mandar o mundo patriarcal para aquele lugar. Mas também é uma experiência linda, todo meu amor a Margot Robbie, que interpreta a Tonya.




Só rezo para que um dia a gente se liberte dessas bagaças, porque eu não aguento mais.

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