O impacto do relacionamento abusivo entre meu casal favorito da TV na minha vida

julho 17, 2017


Ontem terminei de escrever um dos textos mais difíceis dos últimos tempos. Eu achava que o texto sobre a existência ou não de queerbaiting em Grace and Frankie tinha acabado com meu emocional, mas estava enganada. Mas o que é escrever senão envolver-se emocionalmente, não é? Se não fosse para isso, eu continuaria deitada na cama com meu gato, já que está fazendo míseros nove graus (!) agora.

Diferentemente do texto de Grace and Frankie, que rendeu muitas discussões no divã da terapia sobre estar "apta" para comentar um assunto desses e sobre a validação alheia, o texto sobre o relacionamento abusivo entre meus personagens favoritos de Dallas, Sue Ellen e J.R, não despertou sentimentos de que talvez eu fosse uma impostora. Na verdade, o que senti foi uma tremenda tristeza por estar despedaçando a última migalha da Jessica de 2013 que simplesmente chorava vendo os vídeos com cenas deles, feitos pelos fãs da série com músicas de Adele e Lana del Rey.

Como disse no Twitter, eu precisava muito escrever esse texto, e essa vontade surgiu no meio de uma madrugada em que passei uma hora reassistindo a esses vídeos, verdadeiras obras de arte. Nele, as tentativas de estupro de J.R estavam lá, retratadas como momentos amorosos entre o casal. Ali eu tive um momento de epifania: havia chegado a hora de passar meus pensamentos sobre esse tema tão complicado para o papel. Estava na hora de eu prestar contas à pessoa que fui em 2013.



Como não amar?

É sempre um gesto muito corajoso estar disposto a enxergar os problemas de algo que você ama tanto. Durante muito tempo, eu praticamente tinha orgasmos com as cenas tórridas entre Sue Ellen e JR. Nada me deixava tão empolgada quanto os momentos entre eles, porque, meus amigos, a química entre Linda Gray e Larry Hagman é inegável. Eu era uma shipper completa, não só de Sue Ellen e J.R, mas dos próprios atores também. Então pensem em um surto. Pensem em uma garota surtada, eu mesma.

Foi muito difícil começar a ver que havia algo errado. Não lembro quem levantou primeiro a hipótese de que eles pudessem ter vivido um relacionamento abusivo, mas aquilo ficou na minha cabeça durante anos. Quando recomecei a ver a série de onde parei, na oitava temporada, as coisas já não eram as mesmas. Acho que foi ali que comecei a olhar para a situação entre J.R e Sue Ellen de um jeito diferente. Eles tinham de se separar. Eles eram tóxicos um para o outro. Como eu shippava isso, gente?

Dallas teve um impacto bastante forte na minha vida. Foi a primeira vez em que peguei todo o dinheiro que eu tinha na época, 400 reais, para comprar o box com a série completa. Quatorze temporadas, meus amigos. Eu lembro de voltar do correio com a caixa nos braços, atravessar uma grande avenida daqui com aquela preciosidade. Ao largá-la em casa, os músculos dos meus braços tremiam, de tão pesada que ela era. Aquele foi o auge do meu amor por essa série. Não me arrependo. Chorei ao reassistir as primeiras temporadas, pois lembrou os tempos em que tive que assisti-la dublado em francês, já que a série não estava disponível para baixar nenhum cantão dessa Internet.

Além disso, o impacto que esse casal teve na minha vida é algo que percebi ontem escrevendo o texto. Eu achava que ser uma grande shipper não tinha me trazido nada além de lágrimas, mas me enganei. A marca de Sue Ellen e J.R foi muito mais profunda. Eles moldaram quase todas minhas ideias sobre relacionamentos amorosos, como amar é sofrer. Afinal de contas, eles eram o epíteto dessa máxima, de que sofrer é bonito e deve ser glorificado, especialmente se for por amor. 

Sofri muito em todos meus relacionamentos. Eu glorificava cada lágrima derramada, de forma que se eu não estivesse sentindo dor de alguma forma, era porque algo estava errado. Nunca aceitei a ideia de que pudesse existir relacionamentos saudáveis, sem aquele toque excessivo de "emoção" que J.R e Sue Ellen tinham. Quando eu conheci Sue Ellen e J.R, eles representavam tudo isso. Era como me assistir na televisão. Sue Ellen chorava e eu chorava junto com ela, porque a minha vida amorosa, com exceção dos abusos, era igual a dela. 

Sendo assim, eu carreguei esse casal no meu peito, e eles só reforçaram as ideias errôneas sobre amor que nos são enfiadas goela abaixo. Até ontem, eu não tinha me dado conta do tempo que carreguei isso e das consequências na minha vida. De como eu teria sido uma mulher menos desgraçada da cabeça se tivesse percebido como o relacionamento entre eles era tóxico. Contudo, acredito que tudo tem seu tempo. Eu precisei de muitos anos para pensar sobre eles e rever minhas convicções. Sem o feminismo, é provável que eu demorasse muito mais tempo.

Did you mean abuso?


O relacionamento abusivo entre Sue Ellen e J.R é uma questão delicada dentro do fandom da série. Como mostra este post do Dallas Decoder, a opinião das pessoas é diversa. Algumas afirmam que eles funcionavam por eles eram "um baita relacionamento de amor e ódio", por exemplo. É tão louco, veja bem, as pessoas acreditam de verdade na falácia de que ele a amava, só não tolerava o fato de ela beber. Sério? Eu me surpreendo ainda mais quando vejo que esses comentários vêm de mulheres. O patriarcado fez muito bem sua parte ao fazer com a gente naturalize esse tipo de comportamento.

Mas quer saber? A verdade é que internar sua esposa em um sanatório sem o consentimento dela não é amor. Estuprar repetidamente sua esposa não é amor. Ameaçá-la também não. Vocês têm ideia de que tudo isso foi veiculado na televisão durante 20 anos? O mundo assistiu os estupros cometidos por J.R, assistiu Sue Ellen o ameaçando com uma arma para ele sair do quarto. Assistiu os comportamentos possessivos dele toda vez que Sue Ellen ameaçava abandonar o barco. 

Eu precisava escrever tudo isso para a Jessica de 2013. Querida, a culpa não era sua. Você não tinha culpa em shippar toda essa palhaçada. Jessica de 2017, não se cobre tanto por uma parte sua ainda ver os fanvideos e chorar. A vida é cheia de contradições, mas isso significa que você tape o sol com a peneira. Pelo contrário, você está sofrendo justamente por não fazer isso.

Voem, Sue Ellen e J.R

Links interessantes sobre relacionamentos abusivos e afins

1) A grandiosa teoria unificada da tristeza feminina: eu li esse texto há muito tempo, e ele continua tendo um impacto muito forte sobre mim.

2) Abuso não é amor: porque a cultura pop deve parar de romantizar relacionamentos tóxicos: porque se hoje temos Edward e Bella, é porque outrora tivemos Sue Ellen e J.R.

3) Ninguém me perguntou nada, mas cansei de ciúme ser hype: este foi um dos primeiros textos que li da Paula, aliás uma mulher que escreve pra porra, e nele ela comenta a nossa mania de romantizar relacionamentos ruins.

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