O primeiro BEDA a gente nunca esquece

agosto 02, 2017



Ao contrário de muitas pessoas, não sabia o que era BEDA. Eu passei um ano inteiro assistindo aos vídeos da Tatiana Feltrin sobre esse tal de BEDA, sem sequer criar vergonha na cara para procurar o que era.

Pois bem, finalmente descobri e sai da época das carroças! O BEDA vem de Blog Every Day in August. A ideia é postar um texto por dia neste mês, conhecido por passar tão devagar. Decidi aderir à iniciativa porque não me aguento, eu também quero experimentar mais uma vez o mundo da blogosfera do qual sequer me sinto parte.

Já dá pra gente considerar este como o primeiro texto do BEDA?



Se agosto é um mês odioso por si só, agora tenho mais motivos para detestá-lo. Logo no primeiro dia de agosto, a minha atriz francesa favorita, Jeanne Moreau, faleceu. Ela é uma das razões para eu estar participando deste desafio. Preciso manter minha cabeça ocupada, porque senão irei morrer de tristeza por dentro. Não que eu não esteja me rasgando de dor neste exato momento.

A morte da Jeanne foi um negócio estilo "rir para não chorar". Eu estava dormindo quando minha namorada me acordou com a seguinte frase:

A Jeanne morreu.

Fiquei aproximadamente dez minutos tentando assimilar o que tinha acontecido. Ela faleceu. Certo, então eu nunca mais poderia pensar que iria para Paris e faria uma vigília em frente ao seu apartamento? Eu não poderia enviar uma carta para ela agradecendo por ter me ensinado a falar palavrões em francês. Nunca mais. Nunca.

Perdi o sono imediatamente e comecei a entrar nas redes sociais para confirmar o que já estava confirmado. No Twitter, milhares de jornais franceses já noticiavam sua morte. Ela tinha morrido há praticamente dez minutos, quer dizer, a morte havia sido anunciada nesse tempo. Eu pensei que poderia ser uma piada de mal gosto, como no dia em que ela entrou nos TT'S por acidente, porque pensaram que ela tinha falecido. A peça não podia ser pregada duas vezes?

Minha namorada foi trabalhar, eu fiquei rolando na cama, pensando nela. Um pedaço de mim, uma metade adorada de mim havia sido arrancada de mim, e eu não sabia como agir. Dei a notícia ao meu melhor amigo, na esperança de que talvez pudéssemos conversar sobre isso. Ele não me respondeu, então fui dormir o sono dos inquietos. 

Acordei no mesmo quarto onde recebi a notícia, cheio de fotos e discos de Jeanne. Na parede verde há um quadro com uma foto dela, assinada pela própria. Nós brincávamos que aquele era o retrato de Deus a nos observar e vigiar nossos passos. E, de certa forma, era mesmo. Nos momentos de escuridão, Jeanne nos guiou e nos salvou de nós mesmos. Ela sempre tinha uma forma de nos consolar. Nosso bálsamo.

De repente, lembrei de quando tinha 18 anos e perdi minha cantora favorita em circunstâncias parecidas. Ela faleceu, e de manhã cedo me ligaram para avisar. As pessoas falavam comigo como se eu tivesse enviuvado - e eu tinha mesmo. Agora, muitos anos depois, me sinto viúva novamente.

Ser fã de alguém muito mais velho que você é algo doloroso. Você não viveu na mesma época que a pessoa. A morte é uma companheira solitária. Cada dia é uma vitória, cada dia em que você não enxerga o nome de fulano nos TT's. Você está constantemente lutando contra o tempo, contra uma infeliz coincidência do destino que lhe fez nascer quando o fulano já tinha feito mais de 100 filmes. No entanto, isso não impede que você ame essa pessoa da mesma forma do que alguém que nasceu naquela época e acompanha sua carreira. Você chora com os filmes, você grita.

Jeanne sabia bem como fazer meu sangue pulsar nas orelhas. Lembro da primeira vez que assisti a Chamas de verão, um filme pra lá de ousado que ela fez nos anos 60: como gritei. Gritei alto. Havia gente fazendo obras na minha casa, mas eu queria chamar essas pessoas para verem como essa mulher era talentosa. Como ela deixava um diretor extrair o melhor dela, para que assim nós pudéssemos extrair o melhor de nós após assistir a um filme dela. Para nos deixar refletindo, Jeanne se entregava de corpo e alma. Ela não se importava em aparecer suja nos filmes, que personagens cuspissem no seu rosto. Ela queria que a gente embarcasse na viagem com ela.

Eu embarquei inúmeras vezes na viagem e levei meu melhor amigo junto. Quando ainda não conhecia minha namorada, nós passávamos tardes vendo seus filmes. Chegamos até a criar uma musiquinha na qual imitávamos a voz dela rouca pelo cigarro. Até hoje cantamos a música quando nos vemos. Agora cantaremos-a com nostalgia, com a voz embargada.

Já dizia Rita Lee: "Eu não tenho muito o que perder, por isso jogo". Jeanne fez disso um lema de vida. Ela jogou inúmeras vezes, nos cassinos da vida real e do cinema, sem medo de perder. Talvez tenha perdido a reputação de mulher respeitável, mas ela nunca quis isso. Ela não queria se prender a nenhum rótulo e pagou o preço de ter a vida chafurdada, principalmente a relação conturbada com o pai. Porém, ainda assim, Jeanne continuou jogando. Veio para o Brasil, sem falar uma palavra de português, para rodar Joanna Francesa. No Nordeste. Naquele calorão. Essa mulher deve ter morrido de tanto calor.

Até no último filme de sua carreira, Uma dama em Paris, ela apostou todas as suas fichas. Nele, sua personagem aparece apalpando o pênis de um homem mais jovem, outrora seu amante. Uma senhora de 80 e tantos anos, nem precisamos dizer quanta ousadia, né? Isso porque Jeanne, como eu disse, nunca gostou de rótulos. Ela tinha 80 e tantos anos, mas ainda sentia desejo sexual, e daí? Mais uma coisa que ela tentou naturalizar através de seus filmes. Entre outras coisas que Jeanne tentou mostrar para a sociedade é que as mulheres têm desejos sexuais, aceitem. Ela rodou a cena de amor mais bonita do cinema na qual tem um orgasmo ao som de Brahms, em 1958. Que orgulho da minha bichinha.

Se hoje eu sou uma mulher mais consciente deste lixo de sociedade patriarcal na qual vivemos, foi porque Jeanne me iniciou na arte da problematização. Em 1966, ela era vaiada no Festival de Cannes porque levava a discussão sobre a sexualidade para o cinema com Chamas de verão. No entanto, as pessoas insistem em colocá-la no maldito rótulo "musa da Nouvelle Vague", só porque ela trabalhou com metade dos diretores desse movimento. Querem reduzi-la a uma musa, sem ação e nem nada, mas nós não vamos deixar. Nós vamos lembrar que você, Jeanne, assinou o manifesto a favor da legalização do aborto na França, algo que colocou sua carreira em risco. Que você não só atuou como também dirigiu e cantou.

Assim começa esse BEDA, homenageando a mulher que me apresentou um mundo cheio de possibilidades para nós, mulheres. Te amo, Jeanne, teu legado é eterno. Seu espírito livre estará sempre conosco.

Para saber mais sobre Jeanne Moreau:


2) Críticas sobre seus filmes que escrevemos para o Cine Espresso:

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1 comentários

  1. Foi uma dor enorme, ainda está sendo. Estão só posso desejar que o seu coração encontre um pouquinho de força no que ela deixou, seu legado viverá para sempre.



    Eu já disse, mas direi de novo: me emocionei com seu texto para o Cine Suffragette, foi uma linda homenagem.

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