Quem decretou que só poderíamos apreciar Piaf e Brassens?

agosto 14, 2017

Eu tenho gostos peculiares, você não entenderia.

Nunca achei que uma frase tão peculiar de Christian Gray poderia me descrever tão bem. No entanto, ao invés de um quarto cheio de brinquedos sexuais, eu tenho meus CDs e minhas playlists para comprovar o que digo. Quando éramos adolescentes, ser hipster era algo que todos buscávamos, ainda que secretamente. Nós ouvíamos bandas de garagem, bandas que ainda não eram famosas. Se ficavam famosas, nós desprezávamos. Era um campeonato para ver quem aparecia com a novidade mais rápido.

Durante minha adolescência, coisas estranhas aconteceram. Eu tinha o Soulseek, um programa de download de músicas e foi lá que eu formei meu caráter musical. Também tive um amigo, um cara mais velho, que me mostrou boa parte do que conheço atualmente sobre música brasileira. Ele me indicava os álbuns, eu os ouvia e nós discutíamos sobre eles. A melhor parte era criar teorias sobre as músicas, o que teria motivado os cantores a escreverem de tal maneira. No entanto, um pedaço meu cresceu ouvindo Farofa fa fa em uma fita cassete velha da minha mãe, e eu não podia negar essa parte do meu caráter. Por isso, minha adolescência foi uma mistura de bizarrices, de Discoteca do Chacrinha à Valsa do Danúbio Azul, passando por Fuscão preto. Meu Deus, não é revigorante poder gritar FUSCÃO PRETOOOO, VOCÊ É FEITO DE AÇO, FEZ MEU CORAÇÃO EM PEDAÇOS?  Eu não tinha como ser uma pessoa coerente na vida com um gosto incoerente desses.




Em 2009, o meu gosto musical atingiu o ápice do hipster: comecei a ouvir música francesa. Não me faltava mais nada, já tinha uma boininha, uma saia plissada e me sentia a própria France Gall em Sacré Charlemagne. Foi nesse ano que fui no show do Charles Aznavour, e achei que sabia cantar todas as músicas, quando na verdade eu sabia era nada. Querendo ou não, estava me preparando para ser a hipster insuportável do curso de Letras de francês. No entanto, o que aconteceu foi exatamente o contrário: me tornei a hipster do francês ao contrário. Adorava aquilo que ninguém gostava, aquilo que todos carinhosamente chamavam de ringard [brega].

Para começar, minha cantora favorita, Mireille Mathieu, entra nesta categoria. Veja como meu lado farofa fa fa é bom, escolhi a dedo de quem eu ia gostar. Hoje ela é considerada brega na França, e eu entendo, com aqueles agudos importados diretamente de Madame Piaf não tinha como. Outro detalhe importante que fazia de Mimi ringarde é o famoso cabelinho tigelinha que ela usou durante toda a vida. Aquele capacete é a coisa mais brega (e adorável) que já vi nesta vida. Meu Deus, ela só trocava de corte nos especiais de televisão, nos quais era obrigada a usar peruca. Quarenta anos com o mesmo corte, Meu Deus! 

Talvez eu esteja enrolando, mas a verdade é que gostaria de realizar uma defesa apaixonada de tudo que há de ringarde na música francesa.

Ah, Jessica, sério? Mas música francesa é tão chique, acordeon, allez, venez, Milord e não sei mais o quê...

Fico realmente surpresa em perceber que ainda existem pessoas que enxergam a França de uma maneira tão superficial. Eles são um país tão rico, não é só Madame Piaf que existe, tá? Existe o verlan, uma variante da língua falada pelos jovens, o rap, o slam... e a música brega, uma das grandes paixões desta que vos fala. 

Amo a França e me fascinou sempre a maneira como as pessoas enxergam esse país. É mais ainda fascinante perceber como eles projetaram essa imagem de finesse ao ponto de não conseguir fazer com que a gente conceba a ideia de que existem filmes blockbusters e música de "qualidade duvidosa". 

Talvez sobre a música, a gente possa se perguntar: é de qualidade duvidosa para quem? Quem disse? Porque as pessoas dançavam Claude François nas discotecas, nos anos 70. As pessoas amavam as performances pra lá de dramáticas de Sylvie Vartan e Johnny Hallyday, o primeiro casal francês a ser Brangelina quando o conceito ainda não existia. Para as pessoas que dançavam nas discotecas, essa música não era de gosto duvidoso. E se o cinema realizou uma cinebiografia sobre Claude François, é porque algum valor para a música ele teve. 

Quem decretou que só poderíamos apreciar Piaf e Brassens?

Talvez eu sinta esse preconceito maior aqui no Brasil, pois lá fora, por exemplo, o Claude François é adorado. Os franceses reconhecem seu valor. Contudo, por aqui, faz parte da regra cuspir em coisas mais populares, talvez menos poéticas que Serge Gainsbourg. Me parece um desejo de tornar a França um objeto intocável, fazer dela, mais do que nunca, um exemplo a ser seguido. Como vamos falar para alguém que os franceses também fizeram umas músicas meio... ruins? Mas eles não falam sobre desilusões amorosas como ninguém?

Vivo em dois mundos muito diferentes da música francesa e gosto disso. Existe dias em que eu passo minhas tardes ouvindo Alain Bashung, um cantor muito talentoso, adorado pelos intelectuais. Não é à toa, o cara tem umas letras muito maravilhosas, vide La nuit je mens, na qual ele fala sobre Ocupação Francesa, amor e desilusão. Noutros dias eu tomo ao banho ao som de Sylvie Vartan, porque eu amo essa mulher, mesmo ela sendo brega e não tão respeitada quanto Piaf. Bom, eu a respeito muito por ter me ensinado horrores de vocabulário com suas músicas chicleteiras. Antigamente, eu tinha muita vergonha desse meu lado, porque as pessoas esperavam que eu fosse aquele estereótipo chato da pessoa que estuda francês. Ah, dá licença. Hoje sinto é orgulho, mesmo. Todos esses cantores e essas cantoras são parte de uma diversidade muito interessante, de uma França pouco conhecida ainda.

Cantores fora do eixo Piaf-Brassens que você deveria conhecer

Depois desse discurso pra lá de apaixonado, venho por meio desta enaltecer alguns cantores e algumas cantoras que valem a pena conhecer. Vamos lá?

1) Sylvie Vartan


Pois já falei dela por aqui no post sobre Mireille Mathieu, mas o que não falei é que demorei muito para aceitá-la na minha vida. Eu a detestava e acho que era porque, para mim, ela não passava de uma garota loirinha cantando uns iê-iê-iê chatíssimos. No entanto, você precisa abraçá-la no momento certo, quando seu coração estiver disposto a aceitar músicas chicletes.

Por que conhecer? 

Se você se interessa por música dos anos 60, não pode deixar de conhecê-la, porque Vartan representa boa parte do tipo de música para os xovens que eles faziam naquela época. Ela fazia parte do programa Salut, les copains, uma espécie de programa nos moldes do programa Jovem Guarda, no Brasil. Além disso, ela formou com o Johnny Hallyday, o Elvis Presley francês, um dos maiores casais xovens do período. Eles casaram, tiveram um filho chamado David, deu ruim e se separaram. O bom é que eles deixaram uma porrada de músicas bregas para nos deliciarmos, com direito a um revival MUITO BOM em um show do Johnny, nos anos 90. Meus amigos, um ship de respeito.

Músicas favoritas:


1) Toi et moi: Johnny e Sylvie nos melhores anos do casamento deles. Meu Deus, eu não entendo como o filho deles não tem a beleza deles!


2) La drôle de fin: nos anos 70, Sylvie foi fazer música disco e praticamente cresceu e virou mulher, nas palavras de Sandy. Muito drama, muita roupa colada e danças. Amém, porque foi isso que eu pedi mesmo!



2) Johnny Hallyday


O Elvis Presley francês, o cara que deixava as mulheres enlouquecidas. Confesso que eu não o escuto muito, mas não há como negar que o cara era bom. Eu o chamo carinhosamente de "o bicheiro", pois, de tanta plástica, ele ficou parecido com aqueles bicheiros estereotipados de novela.

Por que conhecer?


Se você se interessa por iê iê iê francês, não pode deixar de conhecer o cara que foi considerado por muitos o Elvis Presley francês. Ele tem músicas realmente boas, mas melhor que isso apenas sua vida pessoal, digna de um rockstar.

Músicas favoritas:


1) Noir c'est noir: versão de Black is black, tem toda uma vibe depressiva, embora seja um rockzinho. Não tem nada de mais, mas eu gosto, e daí?


2) Be bop lula: vocês acham que eu ia perder a chance de falar sobre a Mireille Mathieu? Pois é, uma das coisas que eu mais gosto dessa época é que todo mundo fazia música com todo mundo. Então eles pegaram a Madame Piaf e colocaram cantando rock com nosso Elvis. O resultado é: ela não consegue segurar a suposta "guitarra". Não encontrei a versão com o Hallyday, mas vocês PRECISAM ver essa pérola mesmo assim.




3) Claude François


Por que conhecer?


Se Johnny Hallyday foi o Elvis da França, Cloclo (apelido carinhoso de Claude) foi o rei da disco music na França. Se você adora disco music, é sério, você precisa ouvi-lo. Ele se tornou muito famoso na França, especialmente por ter tido uma morte tão trágica e prematura. Claude dançava muito, usava terninhos estilosos e ganhou uma cinebiografia, no ano passado, que retrata sua ascensão fenomenal. O ator que o interpreta, Jérémie Renier, está tão idêntico que chega a me dar medo. Mireille e ele eram bastante próximos, foi assim que eu o conheci. Apenas amor por Cloclo.

Músicas favoritas:

1) Je viens dîner ce soir: ESSA.MÚSICA.DESPERTA.O.MEU.LADO.FRED.ASTAIRE. Sim, eu danço igual as moças do vídeo. Sim, acho je te vois déjà dans l'entrée avec le sourire que j'aimais [eu já te vejo na porta com aquele sorriso que eu amava tanto] um dos versos mais lindos que já vi. Essa performance resume um pouco da magia que o Claude fazia no palco, com esses programas cheio de luzes, com as dançarinas atrás, as Claudettes. Amo tanto que nem sei dizer.


2) Comme d'habitude: a versão francesa de My way, do Sinatra. Puta que o pariu, que música TRISTE. Parece que francês acentua o caráter quero morrer dessa música. A Mireille regravou uma versão dessa canção, e eu não sei dizer qual é a maior depressiva. Jesus Cristo. Essa música também é interessante porque mostra a capacidade de Claude em cantar coisas mais sérias, passeando entre vários ritmos musicais.




4) Dalida

Por que conhecer?


Olha, qualquer pessoa precisa conhecer a beleza da Dalida, física e interior, antes de morrer. Essa bichinha nasceu no Egito e falava nove fucking idiomas, entre eles italiano e francês. Assim como Claude, ela teve um fim bastante trágico, terminando com a própria vida nos anos 80. Também era muito amiga de Mireille, que sentiu a perda da Dalida muito forte naquela época. Na França, a Dali (como eu a chamo) é considerada um ícone gay e suas músicas bombam nas boates de lá. Uma cinebiografia sobre ela foi lançada este ano, e eu espero demais poder assisti-la.

Músicas favoritas

1) Laissez-moi danser: outra música que desperta meu lado Fred Astaire. Meu dia melhora 90% quando a coloco no último volume aqui em casa. É um clássico da música disco, misturando versos em francês, além de ter uma letra muito bacana. Dalida fala sobre viver intensamente, algo que ela fez durante toda sua vida.


2) Je suis malade: Dalida não fez só disco, nem músicas animadas. Ela era uma cantora de grande extensão vocal, e essa voz, gente, te dá arrepios. Je suis malade é um exemplo fantástico de como ela conseguia fazer diversos tipos de música, das mais intensas às mais animadas. PS: que letrão da porra, hein, Serge Lama!




3) Salma ya salama: esta canção tem um pouco a ver com as raízes egípcias da nossa Dali, por isso gosto muito dela. Não nego e nem afirmo que me sinto em uma novela da Gloria Perez quando a escuto.



Ufa, agora cansei. 




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1 comentários

  1. Céus! Obrigada por esse post! hahaha ♥

    No geral, as pessoas realmente possuem uma visão muito superficial e intocada da França, a experiência que tive destoa muito desse caráter très chic que geralmente é associado à França e que, na real, se restringe a Paris, Lyon e cidades mais hype. Quanto mais adentramos no interior do país, longe da cena "jovem", mais percebemos o quanto as pessoas realmente ouvem ringard com força, sem nenhum problema, muitas delas ainda vivem em uma vibe anos 90/80/70 na música e vestem-se, tem o corte de cabelo e usam objetos da época. Fiquei surpresa quando certa vez, quando eu estava em um jantar de natal em uma vila próxima a Vichy, estive na presença de uma mulher na faixa dos 40 anos, amiga de uns amigos meu, ela usava um corte de cabelo "chitãozinho e xororó" com uma maquiagem pesada a la anos 70; ela tinha saído de uma máquina do tempo, era incrível, e ela não era do tipo "curto ser vintage", era simplesmente porque ela mantinha o mesmo estilo desde sempre.

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